Por que os romanos quebravam as pernas dos crucificados na época de Cristo?
Por que os romanos quebravam as pernas dos crucificados na época de Cristo?
Figura 1. Ilustração representa Jesus Cristo carregando o Patibulum até o local de crucificação.
Figura 2: Detalhe do prego metálico utilizado para fixação do condenado à cruz. Mostra a posição precisa em que esses pinos metálicos eram inseridos no punho para sua fixação.
Figura 3. Ilustração mostrando a posição exata em que os pinos metálicos eram inseridos nos pés para sua fixação à cruz.
Figura 4. Resumo visual da dificuldade de ação muscular e respiratória causada pela posição dos membros superiores na cruz.
Aviso Importante!! Este texto contém descrições detalhadas de práticas de execução antigas que podem ser perturbadoras para algumas pessoas, especialmente aquelas com saúde mental fragilizada. Não é nossa intenção glorificar ou justificar tais atos, mas sim oferecer uma visão histórica objetiva, focada na visão médica do ocorrido. É importante reconhecer que muitos dos condenados à crucificação, incluindo Jesus Cristo, foram vítimas de injustiças e violência extrema. Este texto é baseado no livro "A Crucificação de Cristo Descrita por um Cirurgião".
A crueldade da crucificação como método de execução é uma página sombria da história, revelando a brutalidade dos regimes de poder da antiguidade. A morte assim era cruel, com o objetivo de expor e humilhar os condenados, os quais poderiam ser inimigos do Estado e escravos. Todo o processo que a crucificação envolvia já era caracterizado por grande perversidade. No entanto, por que adicionar ainda mais tormento a um processo já tão cruel? Por que, afinal, os romanos escolheriam quebrar as pernas dos crucificados?
A condenação era, geralmente, seguida de espancamento, chicotadas e a caminhada pública do condenado até o local da crucificação carregando o titulus (placa com o nome do condenado e o crime que era acusado de cometer) e levando o próprio patibulum (a parte horizontal que era encaixada à estipe, parte vertical, para formar a cruz). Imagine o cenário: o condenado, debilitado e ensanguentado, é forçado a carregar o próprio instrumento de execução, enquanto é alvo de escárnio e insultos da multidão. Tudo isso fazia o condenado ansiar pelo momento que partiria dessa para uma melhor. Chegando ao local da crucificação, o ritual de horror se desenrola: o condenado é jogado ao chão, posicionado por sobre o patibulum e os punhos, de cada lado, podiam ser amarrados firmemente ou pregados ao patibulum. No entanto, ao que parece, os romanos preferiam pregar os punhos do condenado à travessa de madeira, utilizando pregos de metal de cerca de 13 a 18 cm com cabeça quadrada de 76 mm fincados aos carpos (punhos - mais precisamente, entre o rádio e os ossos da fileira proximal do carpo) (Figura 1). O patibulum com o condenado fixado a ele era levantado e encaixado à estipes, viga vertical, que já estava presa ao solo. Os pés são também perfurados e presos à cruz, deixando o condenado suspenso entre o céu e a terra, numa angústia insuportável. Os pregos, nos pés, eram posicionados no primeiro ou no segundo espaço intermetatarsal, logo distal a articulação de Lisfranc (Figura 2). Algumas variações podiam ocorrer no processo de crucificação, de forma que algumas cruzes tinham um pequeno batente para apoio e fixação dos pés, chamado de suppedaneum (Figura 3).
A partir daí se iniciava um processo angustiante, que culminava na morte lenta do condenado, por asfixia. Asfixia?! Isso mesmo, asfixia: quando a restrição ou a falta de oxigênio levam ao óbito. Tem explicação: é a posição do corpo na cruz que torna o tormento ainda mais insuportável. Com os braços esticados, os músculos do tórax são forçados a trabalhar contra a gravidade, dificultando a respiração (Figura 4). A cada inspiração, o ar é um precioso tesouro, enquanto a expiração se torna um esforço hercúleo. A asfixia se insinua lentamente, como um predador silencioso, enquanto a dor e o desespero consomem o condenado.
Explicando melhor: na crucificação, a posição horizontal ou inclinada para além de 90 graus dos braços em relação ao corpo, impedia o funcionamento adequado da musculatura torácica utilizada para a respiração, bem como limitava a expansão pulmonar, restringindo a quantidade de ar inspirado. Dessa forma, as trocas gasosas ficavam grandemente prejudicadas. A consequência era a oxigenação inadequada do sangue, levando a um aumento progressivo da acidez do pH. Somam-se a isso, a dificuldade progressiva de funcionamento cardíaco motivado não só pelo choque (as chicotadas e todo o castigo pré-crucificação causavam sangramento importante), mas também pela congestão vascular (secundária ao funcionamento inadequado da musculatura, que, por sua vez, é secundária à acidez, à posição dos braços e ao tensionamento muscular). O resultado era a asfixia lenta e progressiva. Quanto mais o condenado se abaixava, flexionando o joelho, pelo cansaço quase letal, mais inclinados os braços ficavam em relação ao corpo e mais tensionada a musculatura, provocando redução ainda maior da expansão torácica e piora da sensação de “afogamento”.
Rapidamente, o condenado assumia uma coloração azulada, pela dificuldade em eliminar o gás carbônico de seu corpo. As cãimbras musculares e as contrações tetânicas devido à fadiga e ao acúmulo de gás carbônico no corpo (hipercarbia), contribuiam para dificultar ainda mais a respiração. Como recurso para aliviar essa situação, os condenados se apoiavam nos pés fixados à estipe (seja pelo suppedaneum ou pelo próprio prego fixado aos pés) para estender os joelhos, melhorar a posição corporal e obter uma respiração mais eficiente. Esse ciclo de luta pela vida ia se arrastando até o condenado perder a consciência e parar de respirar de uma vez por todas. Todo esse processo poderia levar de horas a dias e exigia-se dos soldados que eles ficassem ao lado do condenado para garantir que a morte tivesse ocorrido.
Então, por que quebrar as pernas? A resposta é tão cruel quanto a própria crucificação. Quando os romanos desejavam prolongar o sofrimento, deixavam as pernas intactas, permitindo que o condenado continuasse o ciclo exaustivo de tentar erguer-se para respirar, apenas para cair novamente na desesperança. Era uma forma de prolongar a agonia, de estender a tortura até que a última centelha de vida se apagasse. Outra forma de prolongar o sofrimento era dotar a cruz de um assento rudimentar (sedile ou sedulum), que poderia ser fixada à meia altura, na estipes. No entanto, quando a morte rápida era o objetivo, não havia misericórdia. Barras de ferro eram usadas para quebrar as pernas dos crucificados, o que era chamado de crurifagium. Isso os impedia de se apoiar e, consequentemente, acelerava o processo de asfixia. Era um ato de crueldade calculada, uma maneira de encerrar o sofrimento com uma eficiência brutal. Muito cruel e verídico: os ossos inteiros permitiam prolongar o sofrimento e a humilhação, em uma vida já sem esperança. Os ossos quebrados dificultavam a luta sem sentido pela vida que se esvaía, levando o condenado para o descanso involuntário de forma mais rápida.
Assim, a quebra das pernas dos crucificados era mais do que um gesto de violência. Era um símbolo do poder despótico dos romanos, uma manifestação grotesca de seu controle sobre a vida e a morte. E enquanto olhamos para trás, para aqueles tempos sombrios, somos lembrados não apenas da crueldade da humanidade, mas também da resiliência do espírito humano, que enfrentou o pior dos horrores e, ainda assim, encontrou maneiras de perseverar.
Por: Dr. João Bourbon II, PhD
Referências:
1. Barbet, P (2018). A Crucificação de Cristo descrita por um cirurgião.
2. Edwards, W. D., Gabel, W. J., & Hosmer, F. E. (1986). On the Physical Death of Jesus Christ. JAMA: The Journal of the American Medical Association, 255(11), 1455-1463.
15/05/2024